domingo, 23 de dezembro de 2012

Requerimento


Eu olho para a minha caneca e torço pra ela estar vazia, assim posso me levantar da mesa e pegar mais água fora da repartição. Aqui o mundo não irá acabar, ele precisaria fazer um requerimento, juntar cópia da certidão de nascimento com foto, comprovante original de residência e indicação de três conhecidos para contato. Depois ele teria que aguardar. No protocolo vem escrito “Favor aguardar o prazo legal - entraremos em contato.”.

É o Cléber que formaliza os requerimentos, depois ele encaminha para o Luis Carlos, só ele tem o carimbo oficial. Aí sim, os papeis vão para o setor de remessa e a Kátia os empacota e os põe no carrinho. Duas vezes por semana o Léo, nosso estagiário conduz o carrinho até a inacessível sala do chefe, que fica na baia ao lado da minha. Tudo isso na mesma sala de 20 metros quadrados, com cadeiras, mesas e algumas pilhas de requerimentos por assinar.

A caneta que diz “procedente” ou “improcedente” é a do Doutor Pamplona. Certa vez ele me pagou um bife com fritas e perguntou meu time. E só. Vive em reuniões do Departamento, que, aliás, foi criado há 6 anos e tem o nome DNAIC -Departamento Nacional de Assuntos de Interesse dos Cidadãos. Esse departamento pertence à Secretaria de Assuntos Estratégicos, criada no mesmo evento, em que o fotógrafo oficial foi despedido por não conseguir enquadrar todos os engravatados na mesma foto.

Bom, a pessoa mais interessante da repartição é a minha caneca. E os momentos de maior aventura são quando saímos juntos pelos corredores. Em uma das vezes o bebedouro não tinha água e eu chamei o elevador para descer ao DNIAP – Departamento Nacional de Interesses e Assuntos da População, que fica no andar de baixo.

Dei de frente com um sujeito fétido e gordo, muito gordo, transpirando nojentamente na testa e nas axilas. Cumprimentou a todos e quis me dar a mão. Fingi que não vi. Com certeza ele não conhecia o prédio público, vinha de escada, fedendo ainda mais. Delicadamente ele insistiu em me perguntar onde deveria protocolar seu requerimento. No DNIAP ou no DNAIC. Obviamente eu disse que ele estava no lugar certo, era no DNIAP mesmo, nós do andar de cima já estamos cheio de trabalho.

Enchi minha caneca de água e subi para minha mesa. 45 minutos depois (eu contava porque estava na última hora do expediente de sexta) o gordo fedido, que chegava pela escada, foi até o balcão e ficou pacientemente aguardando o atendimento. Eu o Cléber, o Luis Carlos, a Kátia, e até o Léo, que passava por ali, olhamos, ao mesmo tempo, para o papel grudado na parede que mostrava a escala de atendimento.

"Merda", era eu. Olhei meu relógio. Olhei o gordo. Relógio. Gordo. Relógio. Gordo. Lá estava eu no atendimento... Registrei o pedido. Peguei os documentos. Dei o protocolo e disse que entraríamos em contato. Fiz tudo muito rápido. Aquele cheiro era insuportável. O homem nos desejou um ótimo final de semana e saiu satisfeito pelos degraus da escada.

Fechei minhas coisas, tranquei as gavetas, e já estava saindo quando lembrei que minha caneca ainda estava cheia. Voltei, bebi a água, marquei meu ponto e saí.

Já no meu Escort 92 parado no trânsito, percebi que eu não tinha deixado o requerimento com o Cléber. Depois do semáforo abrir e fechar 3 vezes sem eu engatar a primeira, peguei aquele papel na mão:


“Eu, Josenildo Francisco da Silva, venho por meio deste, requerer à Vossas Senhorias, que vão todos juntos para a casa do caralho!"


(Aguarda-se deferimento do Doutor Pamplona)